quarta-feira, 19 de novembro de 2008

PARA A MINHA SOBRINHA BEATRIZ

A sorte do peixinho voador

A água estava límpida, e o peixinho podia ver claramente os anzóis com iscos variados à espera que ele lhes ferrasse o dente. Mas a mamã sargo já lhe tinha explicado que essa comida (mesmo que parecesse apetitosa: minhoca, sardinha, berbigão, amêijoa, camarão...) era proibida.

Ao nadar pelo seu território, maior à medida que ele ia ganhando coragem e tamanho, enfrentava outros perigos mas ainda era pequeno para que deles fosse vítima: os caçadores submarinos nem olhavam para ele, passava nas calmas através das malhas das redes, e nem encheria a cova de um dente a um eventual predador.

A excepção a esta imunidade de que o pequeno peixe parecia gozar era o ataque aéreo. De facto, quando gaivotas e outras aves mergulhavam, nem sempre reparavam no que apanhavam: era engolir o que estivesse a jeito!



Por isso, certo entardecer de um dia de sol, o peixinho pensou que o primeiro erro da sua curta vida lhe ia custar... a morte: nadou perto demais da superfície e só teve tempo de ver a água agitar-se antes de ser capturado por um bico.

De repente viu-se dezenas de metros acima do mar, sem quase poder respirar. Mas como era um jovem inconsciente, até achou graça à sensação do ar nas escamas: já tinha saltado fora de água, mas isto era incrível. Esqueceu-se mesmo de se debater, maravilhado com a viagem.

E foi talvez por isso, ou saber que não ia matar fome nenhuma com aquela dose bebé de espinhas, que o albatroz errante o depositou instantes de pois quase dentro de água, sem uma única beliscadura, e se fez ao largo para bater, quem sabe, mais um recorde de voo planado sobre os oceanos.

Ainda hoje os safios, polvos e lavagantes mais velhos contam esta história aos jovens peixes: cuidado com o perigo que vem do ar, pois nem todos têm a grande sorte do sarguinho!

TCHÃ TCHÃ!

O SABRE DE CRISTAL

EPÍLOGO RÁPIDO – Et tu...


O caso atingira foros de escândalo nacional, e as primeiras 24 horas foram de loucos: nem Sabre de Cristal, nem Urna da Dor, nem Roberto David... As polícias, nacionais e estrangeiras, andavam frenéticas, revistando tudo quarteirões em redor, utilizando as mais intrusivas ou subtis técnicas... debalde. Prenderam o médico para apresentar serviço, mas não havia provas contra ele e, de qualquer modo, desconhecia-se qualquer móbil que o pudesse ter guiado.

Na manhã do segundo dia, Espada bateu à porta de Mariazinha.

- Espero que tenhas um bom motivo para isto. Quase que ainda nem me deitei. Estive numa festa com uns borrachinhos da escola de moda... duas não me escaparam!

- Descansa que é importante. Descobri tudo!

- A sério? Podes subir!

O jornalista usou o elevador. A porta do 4.º Esquerdo estava aberta. Entrou... e caiu inanimado com uma pancada na nuca!

- Queres que te ponha gelo? Como tive de te amarrar. Admito que tenho a mão pesada...

- Bolas! Pesada é favor! Quando é que soubeste que eu sabia?

- Foi só agora. Só vens cá quando estás bêbado, à noite, ou de dia normalmente tocas a buzina do carro para me infernizar. Tanta delicadeza tocou uma campainha...

- Touché! Isto da net é uma batota, assim os policiais clássicos nem seriam escritos! Quando descobri que o Rogério David foi teu professor de iai-do no Japão a conclusão tornou-se fácil. Ele tinha conhecimentos ocultos, e nem acreditou quando o sabre lhe veio parar às mãos, porque sabia que era um objecto mágico, que tentaria usar para obter um poder esotérico enorme. Por isso propôs-te um negócio: ficares com a urna, para venderes à melhor oferta da indústria, desde que o ajudasses a obter a arma.

- Bonita teoria. Mas como é que isso foi feito, não me dirás?

- De certo modo é simples. O bruxo tinha preparado uma das duas passagens secretas do palacete para que se pudesse aceder ao andar de baixo. Tu estavas sincronizada com ele na central televisiva e só precisavas de substituir imagens ao vivo por pequenas gravações em alturas chave, se calhar enquanto flirtavas com os colegas machos: podes ser fufa mas não deixas de ser uma mulher de se lhe tirar o chapéu. E esperta, por sinal!

- Chega de graxa, até agora isso é só policial de cordel.

- Espera. O David estava no atelier vestido com a máscara e a bata do ofício. Pelo sistema interno de tv que tu lhe montaste veio estudando os maneirismos de cada assistente e os ritmos de funcionamento da grande clínica. E sabes que, num estabelecimento desta dimensão, às vezes as assistentes vão mudando de médico, à medida das necessidades de cada doente.

- Quando chegou a vez do embaixador, quem o recebeu foi o restaurador disfarçado de mulher: com o seu corpo pequeno naquelas roupas podia adaptar-se a qualquer tipo feminino, nem que precisasse de usar saltos, o que afastaria as suspeitas de si.

- Suspeitas de quê?

- De matar o imperador com um veneno indetectável com a seringa da anestesia, antes de lhe retirar os olhos com toda a calma: quem entrasse pensaria que estava a executar qualquer operação, e podia sempre matar um opositor em caso de emergência, fugindo depois para a sua casa. Mas tudo correu como planeado. Depois usou as retinas do infeliz Rai-Cha para a leitura óptica que lhe permitiu entrar na sala de segurança de onde retirou as armas, fugindo para se encontrar contigo numa viatura. Aí já o alarme fora dado e foi-lhes fácil escapar no meio do pandemónio.

- Mas, se isso é verdade, por que não fugi? Ainda estou aqui...

- Estás aqui mas amarraste-me, e não é para teres sexo perverso comigo, de certeza... Para todos o principal suspeito é o David, que estava mais perto dos objectos e desapareceu. Mas tu e eu sabemos que está no fundo do Atlântico, algures entre o Estoril e a barra do Tejo, e decerto não deixaste margem para que seja encontrado. Só tens que deixar a poeira assentar e colher os frutos do crime. Afinal, quem desconfiaria da autoridade? Até foste tu quem revistou as instalações antes e depois, escamoteando as passagens secretas aos olhos da polícia técnica...

- Bravo! Grande novela. Então sou eu que tenho o Sabre de Cristal, não!

- Correcto e afirmativo. E estou a vê-lo daqui, na bainha daquele sabre que costumas usar quando brincamos aos samurais no kendo.

- És demasiado esperto para a tua saúde. Tens razão em tudo o que disseste. Só falta descobrirmor se a lenda está certa, se o cristalaço corta assim tão bem. Comecemos pelo teu pescoço.

- Vejamos, Mariazinha, tem maneiras... Repito, tem maneiras!!!

A lâmina translúcida aproximava-se

- Então? Tem maneiras! Tem maneiras!

- Mas que raio queres tu dizer com isso? Bom, agora vais calar-te para sempre.

A maléfica amazona preparou com cuidado o golpe, estendeu os braços num movimento circular... e viu o seu mais íntimo ser reflectido no gume curvo. A hedionda visão de viscosas reencarnações levou-a a gritar, mas nem assim conseguiu suportar o negro vislumbre da sua alma. Voltou a ponta contra o peito... e o Sabre de Cristal encontrou a bainha para que fora concebido.

Não foi o espectáculo de mais um cadáver que chocou o inspector Muralha quando, finalmente, irrompeu ao pontapé no apartamento. Foi a expressão beatífica da ex-colega Maria Rogério, com a arma mais bonita que já vira espetada entre os voluptuosos seios.

- Bolas, quantas vezes tinha de dizer a senha: “Tem maneiras, tem maneiras!” Já estava a ver-me como um peru no Natal!

- Eh pá, desculpa lá, a porcaria do microfone começou com interferências, e fui eu que decidi avançar por minha conta.

- Olha, que se lixe, acabou tudo em bem. A polícia recuperou os objectos, o Governo salvou a face, o Olmestão vai continuar a viver do petróleo com verniz da tradição a disfarçar, a Mariazinha encontrou a paz no sono eterno, e eu vivi para contar a história num livro que me vai dar pipas de massa.

- OK, estiveste bem, mas, mesmo assim, tens de admitir que tiveste um bocado de sorte. No entanto, mas não desdenhava ter-te na brigada. Já pensaste em tornar-te detective?

- Bom, pensar já pensei, mas estou farto de trabalhar para quem me impõe regras. Um dia, quem sabe me encontras a atrapalhar-te os passos numa espera ao mesmo suspeito? Há para aí muitos Marias e Manéis à beira do abismo...




LUÍS COSTA