quarta-feira, 19 de novembro de 2008

PARA A MINHA SOBRINHA BEATRIZ

A sorte do peixinho voador

A água estava límpida, e o peixinho podia ver claramente os anzóis com iscos variados à espera que ele lhes ferrasse o dente. Mas a mamã sargo já lhe tinha explicado que essa comida (mesmo que parecesse apetitosa: minhoca, sardinha, berbigão, amêijoa, camarão...) era proibida.

Ao nadar pelo seu território, maior à medida que ele ia ganhando coragem e tamanho, enfrentava outros perigos mas ainda era pequeno para que deles fosse vítima: os caçadores submarinos nem olhavam para ele, passava nas calmas através das malhas das redes, e nem encheria a cova de um dente a um eventual predador.

A excepção a esta imunidade de que o pequeno peixe parecia gozar era o ataque aéreo. De facto, quando gaivotas e outras aves mergulhavam, nem sempre reparavam no que apanhavam: era engolir o que estivesse a jeito!



Por isso, certo entardecer de um dia de sol, o peixinho pensou que o primeiro erro da sua curta vida lhe ia custar... a morte: nadou perto demais da superfície e só teve tempo de ver a água agitar-se antes de ser capturado por um bico.

De repente viu-se dezenas de metros acima do mar, sem quase poder respirar. Mas como era um jovem inconsciente, até achou graça à sensação do ar nas escamas: já tinha saltado fora de água, mas isto era incrível. Esqueceu-se mesmo de se debater, maravilhado com a viagem.

E foi talvez por isso, ou saber que não ia matar fome nenhuma com aquela dose bebé de espinhas, que o albatroz errante o depositou instantes de pois quase dentro de água, sem uma única beliscadura, e se fez ao largo para bater, quem sabe, mais um recorde de voo planado sobre os oceanos.

Ainda hoje os safios, polvos e lavagantes mais velhos contam esta história aos jovens peixes: cuidado com o perigo que vem do ar, pois nem todos têm a grande sorte do sarguinho!

TCHÃ TCHÃ!

O SABRE DE CRISTAL

EPÍLOGO RÁPIDO – Et tu...


O caso atingira foros de escândalo nacional, e as primeiras 24 horas foram de loucos: nem Sabre de Cristal, nem Urna da Dor, nem Roberto David... As polícias, nacionais e estrangeiras, andavam frenéticas, revistando tudo quarteirões em redor, utilizando as mais intrusivas ou subtis técnicas... debalde. Prenderam o médico para apresentar serviço, mas não havia provas contra ele e, de qualquer modo, desconhecia-se qualquer móbil que o pudesse ter guiado.

Na manhã do segundo dia, Espada bateu à porta de Mariazinha.

- Espero que tenhas um bom motivo para isto. Quase que ainda nem me deitei. Estive numa festa com uns borrachinhos da escola de moda... duas não me escaparam!

- Descansa que é importante. Descobri tudo!

- A sério? Podes subir!

O jornalista usou o elevador. A porta do 4.º Esquerdo estava aberta. Entrou... e caiu inanimado com uma pancada na nuca!

- Queres que te ponha gelo? Como tive de te amarrar. Admito que tenho a mão pesada...

- Bolas! Pesada é favor! Quando é que soubeste que eu sabia?

- Foi só agora. Só vens cá quando estás bêbado, à noite, ou de dia normalmente tocas a buzina do carro para me infernizar. Tanta delicadeza tocou uma campainha...

- Touché! Isto da net é uma batota, assim os policiais clássicos nem seriam escritos! Quando descobri que o Rogério David foi teu professor de iai-do no Japão a conclusão tornou-se fácil. Ele tinha conhecimentos ocultos, e nem acreditou quando o sabre lhe veio parar às mãos, porque sabia que era um objecto mágico, que tentaria usar para obter um poder esotérico enorme. Por isso propôs-te um negócio: ficares com a urna, para venderes à melhor oferta da indústria, desde que o ajudasses a obter a arma.

- Bonita teoria. Mas como é que isso foi feito, não me dirás?

- De certo modo é simples. O bruxo tinha preparado uma das duas passagens secretas do palacete para que se pudesse aceder ao andar de baixo. Tu estavas sincronizada com ele na central televisiva e só precisavas de substituir imagens ao vivo por pequenas gravações em alturas chave, se calhar enquanto flirtavas com os colegas machos: podes ser fufa mas não deixas de ser uma mulher de se lhe tirar o chapéu. E esperta, por sinal!

- Chega de graxa, até agora isso é só policial de cordel.

- Espera. O David estava no atelier vestido com a máscara e a bata do ofício. Pelo sistema interno de tv que tu lhe montaste veio estudando os maneirismos de cada assistente e os ritmos de funcionamento da grande clínica. E sabes que, num estabelecimento desta dimensão, às vezes as assistentes vão mudando de médico, à medida das necessidades de cada doente.

- Quando chegou a vez do embaixador, quem o recebeu foi o restaurador disfarçado de mulher: com o seu corpo pequeno naquelas roupas podia adaptar-se a qualquer tipo feminino, nem que precisasse de usar saltos, o que afastaria as suspeitas de si.

- Suspeitas de quê?

- De matar o imperador com um veneno indetectável com a seringa da anestesia, antes de lhe retirar os olhos com toda a calma: quem entrasse pensaria que estava a executar qualquer operação, e podia sempre matar um opositor em caso de emergência, fugindo depois para a sua casa. Mas tudo correu como planeado. Depois usou as retinas do infeliz Rai-Cha para a leitura óptica que lhe permitiu entrar na sala de segurança de onde retirou as armas, fugindo para se encontrar contigo numa viatura. Aí já o alarme fora dado e foi-lhes fácil escapar no meio do pandemónio.

- Mas, se isso é verdade, por que não fugi? Ainda estou aqui...

- Estás aqui mas amarraste-me, e não é para teres sexo perverso comigo, de certeza... Para todos o principal suspeito é o David, que estava mais perto dos objectos e desapareceu. Mas tu e eu sabemos que está no fundo do Atlântico, algures entre o Estoril e a barra do Tejo, e decerto não deixaste margem para que seja encontrado. Só tens que deixar a poeira assentar e colher os frutos do crime. Afinal, quem desconfiaria da autoridade? Até foste tu quem revistou as instalações antes e depois, escamoteando as passagens secretas aos olhos da polícia técnica...

- Bravo! Grande novela. Então sou eu que tenho o Sabre de Cristal, não!

- Correcto e afirmativo. E estou a vê-lo daqui, na bainha daquele sabre que costumas usar quando brincamos aos samurais no kendo.

- És demasiado esperto para a tua saúde. Tens razão em tudo o que disseste. Só falta descobrirmor se a lenda está certa, se o cristalaço corta assim tão bem. Comecemos pelo teu pescoço.

- Vejamos, Mariazinha, tem maneiras... Repito, tem maneiras!!!

A lâmina translúcida aproximava-se

- Então? Tem maneiras! Tem maneiras!

- Mas que raio queres tu dizer com isso? Bom, agora vais calar-te para sempre.

A maléfica amazona preparou com cuidado o golpe, estendeu os braços num movimento circular... e viu o seu mais íntimo ser reflectido no gume curvo. A hedionda visão de viscosas reencarnações levou-a a gritar, mas nem assim conseguiu suportar o negro vislumbre da sua alma. Voltou a ponta contra o peito... e o Sabre de Cristal encontrou a bainha para que fora concebido.

Não foi o espectáculo de mais um cadáver que chocou o inspector Muralha quando, finalmente, irrompeu ao pontapé no apartamento. Foi a expressão beatífica da ex-colega Maria Rogério, com a arma mais bonita que já vira espetada entre os voluptuosos seios.

- Bolas, quantas vezes tinha de dizer a senha: “Tem maneiras, tem maneiras!” Já estava a ver-me como um peru no Natal!

- Eh pá, desculpa lá, a porcaria do microfone começou com interferências, e fui eu que decidi avançar por minha conta.

- Olha, que se lixe, acabou tudo em bem. A polícia recuperou os objectos, o Governo salvou a face, o Olmestão vai continuar a viver do petróleo com verniz da tradição a disfarçar, a Mariazinha encontrou a paz no sono eterno, e eu vivi para contar a história num livro que me vai dar pipas de massa.

- OK, estiveste bem, mas, mesmo assim, tens de admitir que tiveste um bocado de sorte. No entanto, mas não desdenhava ter-te na brigada. Já pensaste em tornar-te detective?

- Bom, pensar já pensei, mas estou farto de trabalhar para quem me impõe regras. Um dia, quem sabe me encontras a atrapalhar-te os passos numa espera ao mesmo suspeito? Há para aí muitos Marias e Manéis à beira do abismo...




LUÍS COSTA

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

TININITININITININI....


O SABRE DE CRISTAL

CAPÍTULO III – Tudo se desenrola

O repórter dormiu como um bebé – se mais um atentado destes lhe tirasse o sono era melhor mudar de vida – e resolveu debruçar-se mais um pouco sobre as questões em volta do sabre e do relicário. Juntos tinham superior importância simbólica e religiosa, separados valiam intrinsecamente: pelo contributo que o cristalaço - confirmadas as propriedades da lenda, em especial pelo manuseamento do especialista David - poderia trazer à tecnologia moderna, se pudesse ser replicado, e pela raridade única de tais antiguidades. Algo por que valia a pena matar, cogitou...

Pensamentos não eram tidos quando Mariazinha lhe ligou.

- Lembras-te daquela dica que te dei? Das velharias estrangeiras?

- Sim, abriste-me o apetite, e até já me interessei pelo assunto

- Pois a mim já me estragaram o pequeno almoço. O imperador foi assassinado, e logo quando eu estava de serviço! Foi uma confusão do caraças!

- Assassinado? De certeza?

- Pensa-se que envenenado, com uma daquelas toxinas que é muito difícil detectar. Só a autópsia o dirá. E eu estava na sala de vigilância a tempo inteiro, com os olmestinos, e ninguém sabe dizer como tudo aconteceu! Vale mesmo a pena ir fazer cursos ao FBI e à MOSSAD para isto! Tudo o que puderes fazer por fora para me ajudar é bem-vindo...

Foi ter com ela, e, mesmo com o passe especial e a cunha telefónica, quase lhe batiam antes de chegar ao local do crime.

- Olá fofinho, as minhas amigas têm-te tratado bem?

Ainda não se tinha habituado a saber que aquela ruiva, um mulherão de quase 1,80 metros e curvas de fazer uma modelo verde de inveja, gostava tanto ou mais de mulheres do que ele. Mas, também, era filha de um general, e tinha corrido Mundo quase a brincar com baionetas e rodeada de fardas... Deu nisto.

- Precisas mesmo de mim, para não entrares logo à bruta como é costume...

- Até parece verdade. Bom, é assim: o nosso esticadinho aproveitou a estada para completar a dentadura no consultório do dr. Ricardo. Segundo a assistente, o odontologista completou a primeira parte do implante, deu os pontos nas gengivas. Depois ela subiu a cadeira, pediu-lhe para bochechar com água, não se mexeu... e quando lhe tiraram o pano da cara estava morto. Sem um pio! E sabes o que é mais estranho? Não consegues adivinhar!

- Faltavam-lhe os olhos...

- Como é que...

- Isso agora não interessa, confirma mas é já se, na confusão, as preciosidades ainda lá estão. O mais certo é irem longe a esta hora...

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

15 MINUTOS DE FAMA

Ah pois é, a caixa que mudou o mundo pode tornar-nos celebridades de um momento para o outro... A prova está em http://sic.aeiou.pt/online/scripts/2007/videopopup2008.aspx?videoId={323709A3-33CC-4ABC-888F-F715E14294DF}

OLÁ FÃS, A ESPERA ACABOU...


O SABRE DE CRISTAL

CAPÍTULO II – Um gume na escuridão

A oficina de restauro representava bem um sinal dos tempos. Tratava-se de um palacete vizinho ao casino cujo dono, reduzido pelas dívidas de jogo a desbaratar os bens e alugar a habitação familiar, se dedicara a aprender o ofício de reparar os artigos mais degradados que lhe restaram.

Senhor de fina educação, que os pais, já falecidos, quiseram que fosse clássica - completando-a, quando a época era de vacas gordas, com uma volta ao Mundo cultural -, e dotado de vontade férrea, foi granjeando fama de artesão notável, capaz de devolver a vida dada pelos autores às mais destruídas obras de arte, em especial as do longínquo Oriente, e de preferência armas brancas, em cujo manejo se tornara exímio, na juventude.

Reservara para si o primeiro andar, e alugara o térreo a uma florescente sociedade de dentistas, conhecida pela avançada tecnologia de implantes.

Curioso personagem, algo anacrónico – pequeno e magro, como que um gnomo taumaturgo - mas cujas capacidades profissionais não deixavam dúvidas a quem quer que fosse, justificando a viagem do Levante longínquo do espólio precioso.

Já adivinharam que se tratava dos testemunhos da dor do mágico oriental, vítimas de séculos de esquecimento debaixo dos escombros, e estimados com veneração pelo povo cuja terra tão violentamente tremera.

A lenda diz que o Sabre de Cristal julga o valor do imperador que o empunhar como Homem Completo, legitimando-o para governar o povo. Sempre as dinastias invocaram a sucessão de Jin-El, mas agora que se descobriu a arma, a unificação política do Olmestão depende da cerimónia de confirmação a realizar quando o meu Palácio de Jade estiver reconstruído. E a imperatriz deverá levar as cinzas de Ni-La, homenageando a Mãe da Nação, cuja prole, diz-se, fundou a nossa nação, explicou o alto e digno imperador Rai-Cha, parecendo em forma para os 60 anos que contava, 40 dos quais à frente dos destinos do pequeno mas rico país petrolífero e mineiro, cujas produções despertavam a cobiça de nacionais e estrangeiros.

Estava com dois simiescos e enormes guarda-costas na presença de Roberto David, que, excitadíssimo, nem via os seguranças e contemplava em êxtase as peças na sua mesa de trabalho, tendo compreendido perfeitamente o discurso aristocrático, tão vasta era a sua erudição linguística.

- Sim, Majestade, entendo, Majestade. Pode ficar Sua Alteza descansada, que toda a experiência dos meus 50 anos de trabalho serão devotadas a devolver estas maravilhas, dentro do humanamente possível, ao esplendor que lhes concedeu o génio do Mago! Mas lembre-se que nenhuma criatura humana ainda tentou restaurar o cristalaço!

- Faça o seu melhor. Mas, insisto, deve compreender que todos os cuidados são poucos para preservar a integridade e a posse destes tesouros, pois se caírem nas mãos erradas a guerra civil é certa, e poderemos mesmo perder a independência, caso demos mostras de fraqueza os agressivos vizinhos da nossa região... O nosso chefe de sgurança ajustará os pormenores consigo, mas só eu terei meios para lhe dar acesso às obras, que, à nossa saída, estarão guardadas pela tropa de elite e vigiadas e protegidas electronicamente.

- Muito bem, Majestade. Como desejar.

Ao mesmo tempo, Espada estudava o que podia sobre a arma conhecida na lenda como Sabre de Cristal. Era fascinado por tudo o que tinha lâmina, de punhal a montante, de shuriken a florete, de tal modo que lhe perguntavam se tinha mudado o apelido de propósito.

Por vezes arrependiam-se da piada, pois tinha o condão de metamorfosear o rosto, que de ordinário lhe interessava manter bonacheirão, gelando os olhos azul-cinza. Aí metia respeito, e tinha cabedal para apoiar o bluff se fosse preciso ir a jogo.

Cansado de tentar distinguir verdade de teoria parva na internet, foi dar uma volta noctívaga aos jardins do casino, depois de passear à beira-mar. Não se conteve e espreitou para a mansão onde sabia que a raridade estava a ser reparada, vendo uma luz tardia. O artesão devia estar absorto na tarefa minuciosa. Aproximou-se até ser barrado pela segurança, só mesmo por vício profissional, e resolveu ir até às salas de jogo ver o que pescava de informações.

Mas desistiu quando um gume faiscou na escuridão e se cravou na palmeira que acabava de passar, com um silvo de morte. “Gosto de lâminas, e esta é um bonito espécime, mas ainda não estou pronto para patinar”, pensou, retirando a faca esguia do tronco antigo e voltando a casa montado num assobio. Mais uma para a colecção...

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

O SABRE DE CRISTAL: CAPÍTULO 1


O tremor de terra

A ressaca já ia alta, e os raios do sol de Verão ofendiam-lhe as pupilas e torturavam-lhe o cérebro, como se não bastassem os ruídos da grande cidade costeira: malditas margueritas!!! E aquele zumbido... ah, sim, o telemóvel, droga!

- Sim, Rui Espada aqui, onde é o fogo, um homem não pode descansar... Uma da tarde? Sim, e então, um jornalista não tem horários! Falhei o serviço? Ora, uma inauguração da treta... Copiem os textos da agência, que não dou cobertura a corta-fitas!

E desligou. Quando encurraladado, nunca dar parte de fraco, era um dos seus lemas. Afinal, para que serve o estatuto de grande repórter se não podemos baldar-nos ao trabalho depois de uma noite de estroina?

Já estava de pé a meditar na logística necessária para tomar um duche com pequeno-almoço associado, quando o grilo electrónico se fez ouvir de novo.

- Outra vez, inquiriu em grito, sem olhar para o número do visor (mau feitio, ou excesso de sangue no álcool...)?

- Olha lá, estás a falar com a tua mãe ou quê? Estás mas é a precisar que te chegue a roupa ao pêlo como anteontem lá no ginásio!

Grande bronca, era a Mariazinha, ou melhor, a inspectora-especial da Judite Maria Rogério, sua amiga, confidente, mestre de artes marciais e, ocasionalmente, fonte preciosa de dicas oriundas do submundo em que buscava os factos para apelar, em sangrentas manchetes, ao espanto dos transeuntes nos escaparates onde o seu jornal era exibido.

Foi baixar o som da televisão, que tinha ficado ligada (um abalo sísmico tinha trazido à luz do dia umas relíquias num país de nome asiaticamente impronunciável, lia a pivô do Geographic Discovery), e foi pôr água na fervura.

- Fofinha, desculpa lá, os tipos do jornal acordaram-me por causa de um serviço da tanga, eu que lhes ando a dar cachas dia sim dia sim... Bom, já há uns meses que não, mas tu podes confirmar que isto anda mal de crimes... Parece que os maus também foram de férias!

- Muito engraçado! Foi em pesquisas infiltrado que te encarroçaste ontem? Cheira-me mais a caso de saias!

- OK, ganhaste, mas tenho de manter uma imagem de boémio e mulherengo para ganhar o respeito e a confiança dos meliantes, sabes bem...

- Pois sim, bem te conheço ó máscara. Mas adiante. Para provar que estás perdoado, finge que nunca te disse isto: vamos ter um trabalhinho top secret de protecção a umas obras de arte antiquíssimas do Oriente, que vêm a restauro. O próprio imperador do Olmestão vem na comitiva, porque as bugigangas são assim como que um tesouro religioso...

Já não ouviu bem esta parte – Sim, sim, obrigado, Mariazinha, depois falo contigo, pois estava a ver no ecrã o resgate de uma múmia – pareceu-lhe que falaram em 3 mil anos AC... – e uma arma curiosa.

“Parece que a lâmina é transparente”, pensou antes de deixar a água correr sobre o corpo de 30 anos musculados, ainda imune aos vícios nocturnos.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Renascer


O tratado*

"Um velho calção de banho
O dia pra vadiar
Um mar que não tem tamanho
E um arco-íris no ar"
Tarde em Itapuã, Vinicius de Moraes

Porreiro, pá. Já assinei o tratado da João Crisóstomo, o balúrdio que convoquei mudou de banco, amigos como dantes, quartel-general em Abrantes. Acaba hoje um ciclo de 13 anos (xiça, ainda bem que não é sexta!) a cheirar o inimitável napalm da redacção de "Record", entre apimentados serviços sui generis, de jogos de futebol dos grandes ou onde Judas perdeu as botas a balonismo e mergulho (saravá Santos Costa!), de Paris ao Pico (saravá Luís Óscar!) passando pelo Masters ou o Mundial de Atletismo (estagiários, sejam foquinhas ou esquilinhos: - bem feito que não lhes paguem para não derreterem tudo em shots e ganza - o leite vem da vaca e não do supermercado, e as notícias não vêm do corta-e-cola, aconteceram nalgum lado... ou não). Um espólio de experiências que não troco por nada.

[FX: I'm free, Morphine]

Uma citaçãozinha no início do texto dá sempre aquela pala de intelectual licenciado na Nova, e, se apelarmos aos pífios plumitivos isadelfos, aí temo-los agarrados por onde queremos. Já no jornalismo as coisas fiam mais fino, há condicionantes de que o comum dos mortais nem suspeita, ou é incauto cúmplice ao entrar com 75 cêntimos diariamente.

Aos mais experientes oficiais dum inenarrável por maravilhoso ofício, neste momento não consigo dizer nada. Aos ainda mais experientes, lembro: mais vale ser bonito, rico, e saudável do que feio, pobre e doente...

E eu? Como diria (lagarto, lagarto...) um conhecido sportinguista (saravá Moreira & Lorvão), eu vou andar por aí. Estarei atento ao singrar da nau recordista, convicto de que, entre escolhos e erros de navegação, chegará a bom porto, transpostas as vagas alterosas e os bancos de nevoeiro.

Bom, toca a trabalhar seus calaceiros, saravá para todos, pois isto ainda dói um bocado cá dentro e chega de escrita fiada: a partir de agora só para quem me pagar! Foi bonita a festa, pá. Ceausescu e até Brejnev
LUÍS QUARESMA COSTA

*Publicar apenas depois das 18 horas, sem opção comentários

PS: Se alguém precisar de um jornalista, estou livre, acabou a exclusividade... [FX: I'm free, Tommy, The Who]

domingo, 20 de janeiro de 2008

I'M BACK (IT IS I, LE COSTA)

O SABRE DE CRISTAL

PRÓLOGO

“The Beggining is a very difficult time”
-“Dune”, David Lynch

Raramente se encontra combinação mais poderosa do que o amor e a maestria de uma Arte. Assim, o casamento do renomado Alquimista e Professor de Respiração com uma Sacerdotisa da Natureza só podia originar filhos bonitos e prenhes de esperança para a Humanidade, momentos de alegria com grandes amigos e desenvolvimentos raros de energias incalculáveis.

Tudo isto o antigo guerreiro – sim, para ter Paz há que ganhar muitas batalhas – sintetizou em dois Objectos de Poder.

Saibam, pois, que o Mago descobrira (ou reencontrara...), contando inúmeras noites em branco, e muitos séculos antes de Einstein, que a Matéria é análoga à Energia, e que a sua subtil transmutação, no momento e estado de Espírito ideais, pode originar produtos só imagináveis, e nem sequer para o comum dos Mortais.

Assim, tinha dominado a Arte do Cristalaço (eras mais tarde, uma versão abastardada foi utilizada pelos vidreiros da Ibéria), material virtualmente indestrutível que lhe permitiu fazer filigranas delicadas tais ressaca do Atlântico ao luar de Agosto com a resistência do diamante, ou armas leves como penas que cortavam pedra. Este conhecimento entre todos os que adquiriu celebrizou-o, enriqueceu-o... e tirou-lhe o que mais amava.




De facto, criara imunidade aos vapores venenosos do chumbo, que quase podia beber derretido ao fim de décadas de manuseamento, mas em cada noite de paixão estava a matar aos poucos a esposa amada, frágil ente perante os mistérios da Física.

Saiu, pois, consumido de desgosto da cremação da nova Deusa dos Sóis, levando apenas as cinzas e a roupa que tinha no corpo.


Na montanha construiu com as próprias mãos um laboratório único, para ser usado apenas uma vez, e as ferramentas para retirar da Terra os mais puros materiais, que só ele, no seu tempo, conseguia reconhecer e trabalhar.

Desse esforço sobremortal de 20 anos nasceram dois tesouros que Salomão ou os Templários não rejeitariam para as colecções.

Para os etéreos despojos da amada concebeu e executou em forma de cacho de uvas brancas uma urna mínima que faria corar Fabergè de vergonha, peça solidária de metal translúcido com laivos amarelados – usara desta vez mais ouro do que pedra filosofal no cadinho - com tampa ornada por um gigantesco berilo, cristal divinatório dos arcanos druidas, lapidado com lágrimas.

Depois, pensou num meio de expiação que pudesse falar em seu nome durante a Eternidade, e lembrou-se de todas as mortes que o seu braço treinado causara em Guerra. Justas, talvez. Mas mortes, de filhos, pais e irmãos. Que haviam deixado viúvas órfãos, e casais destroçados de dor.

Foi a fase mais difícil, apesar de tudo, porque o Amor simplifica tudo. Já a Ética fia mais fino. Como o gume de um sabre, talvez... E deitou mãos à obra. De uma pepita maciça de ferro criou a recurva lâmina inspiradora dos armeiros japoneses, que sempre tentaram voltar a essa excelência primordial, contada através das gerações pelos bardos, batendo, dobrando, voltando a dobrar milhares de vezes o aço... pobres ingénuos, néscio Hattori Hanzo, faltava-lhes o essencial!

O segredo alquímico do Cristalaço (além da pureza do aço – há quem diga que é impossível obtê-la em 100 por cento, mas uma misteriosa coluna no Oriente prova o contrário: será que é um Padrão dos Descobrimentos extreterrestre?) é chegar ao improvável ponto de fusão em que o metal é soprável por uma cânula: em vez de fazer copos, porque não nessa altura usar um mero molde (vieram a a florescer de igual modo na mesma região da Península Luso-Hispânica) para que a espessura e consistência sejam as pretendidas?

A simplicidade é sempre o mais difícil de obter: que o acto reflicta o pensado. E, muitas luas depois, os olhos azuis-rasgados de Jin-El contemplavam a perfeição.

Comecemos pelo punho, em que a guarda foi constituída por uma suástica, símbolo do Movimento da Criação Universal muito mais tarde conspurcado por uma das Legiões Negras: cada raio, seu relâmpago de pedras preciosas multicores, viradas para o adversário, que só com
o brilho se desoncentraria. Mas a lâmina, amigos, a lâmina...

Tomemos uma pena da cauda de um pavão no cio, acabada de perder num acto vibrante de amor com a companheira do príncipe entre as aves, enfim seduzida.

Mantenhamos-lhe a paleta incomensurável, mas cambiante a todo o momento, como mar sob céu um nadinha encoberto.

Mas, para quem a segura, que a obra de arte bélica mantenha a cor uniforme, embora com reflexos de um... como dizê-lo, isso mesmo, um sabre, mas um sabre que não é um sabre (incha Aristóteles, hoorray Magritte), pelo menos como os das cargas de cavalaria ou dos duelos efémeros dos samurais, talvez até mais parecido com aqueles que só cortam gargalos de garrafas de champanhe.

Isto tudo conseguiu facilmente concretizar o génio de Jin-El, e mais.

Um bebé de meses pegaria na arma como na roca, e a armadura mais resistente seria como uma fralda para lhe suster o golpe.

Num rio, ou melhor, com a lâmina enterrada no leito de seixos de um regato de trutas, enfrentando a corrente, as folhas mortas em viagem, em vez de se suicidarem ao meio, não só contornariam o fio acerado que nem o ferrão de uma cobarde melga em noites quentes de Verão, como reverdedeceriam para logo dar lugar a rebentos numa pequena Primavera.

Era à medida de quem o usasse, anão ou gigante, e obrigava quem o tirasse da bainha (já veremos como era...) a dizer a verdade, sob pena de aquecer tanto como a forja candente em poucos segundos.

E, the last but not the least, se usada como espelho de meditação, como o criador pretendera, dava a medida espiritual de quem a contemplava, bem como a sua posição na Via do Que Foi, É, e Há-de Ser.

Chorou 2 dias após dar por terminada a tarefa. Preparou um explosivo que inventara nas horas livres (mais tarde houve quem criasse o Prémio Nobel por causa disso, mas sobre o velho estudante nem uma linhaça...), colocou-o nas rochas da caverna (não, não é uma alegoria) em pontos calculados matematicamente para o maior efeito de alavanca - com Pitágoras e Arquimedes nunca teve hipóteses de trocar apontamentos – e deitou-se com as cinzas de Ni-La nas mãos, e o sabre ao lado na bainha.

Em ambas as relíquias tinha gravado em todas as línguas que conhecia – e eram muitas – a frase: “Peço-te perdão, Mãe Terra.”

Ficou na escuridão a ver esgotar-se o a chama do rastilho, e os últimos pensamentos antes da derrocada foram: “Haverá quem se lembre de mim?”

Houve um estrondo, barulho de choques secos e tudo quedou mudo durante milénios. Até que, num espaço-tempo muito próximo do nosso...