quarta-feira, 8 de outubro de 2008

OLÁ FÃS, A ESPERA ACABOU...


O SABRE DE CRISTAL

CAPÍTULO II – Um gume na escuridão

A oficina de restauro representava bem um sinal dos tempos. Tratava-se de um palacete vizinho ao casino cujo dono, reduzido pelas dívidas de jogo a desbaratar os bens e alugar a habitação familiar, se dedicara a aprender o ofício de reparar os artigos mais degradados que lhe restaram.

Senhor de fina educação, que os pais, já falecidos, quiseram que fosse clássica - completando-a, quando a época era de vacas gordas, com uma volta ao Mundo cultural -, e dotado de vontade férrea, foi granjeando fama de artesão notável, capaz de devolver a vida dada pelos autores às mais destruídas obras de arte, em especial as do longínquo Oriente, e de preferência armas brancas, em cujo manejo se tornara exímio, na juventude.

Reservara para si o primeiro andar, e alugara o térreo a uma florescente sociedade de dentistas, conhecida pela avançada tecnologia de implantes.

Curioso personagem, algo anacrónico – pequeno e magro, como que um gnomo taumaturgo - mas cujas capacidades profissionais não deixavam dúvidas a quem quer que fosse, justificando a viagem do Levante longínquo do espólio precioso.

Já adivinharam que se tratava dos testemunhos da dor do mágico oriental, vítimas de séculos de esquecimento debaixo dos escombros, e estimados com veneração pelo povo cuja terra tão violentamente tremera.

A lenda diz que o Sabre de Cristal julga o valor do imperador que o empunhar como Homem Completo, legitimando-o para governar o povo. Sempre as dinastias invocaram a sucessão de Jin-El, mas agora que se descobriu a arma, a unificação política do Olmestão depende da cerimónia de confirmação a realizar quando o meu Palácio de Jade estiver reconstruído. E a imperatriz deverá levar as cinzas de Ni-La, homenageando a Mãe da Nação, cuja prole, diz-se, fundou a nossa nação, explicou o alto e digno imperador Rai-Cha, parecendo em forma para os 60 anos que contava, 40 dos quais à frente dos destinos do pequeno mas rico país petrolífero e mineiro, cujas produções despertavam a cobiça de nacionais e estrangeiros.

Estava com dois simiescos e enormes guarda-costas na presença de Roberto David, que, excitadíssimo, nem via os seguranças e contemplava em êxtase as peças na sua mesa de trabalho, tendo compreendido perfeitamente o discurso aristocrático, tão vasta era a sua erudição linguística.

- Sim, Majestade, entendo, Majestade. Pode ficar Sua Alteza descansada, que toda a experiência dos meus 50 anos de trabalho serão devotadas a devolver estas maravilhas, dentro do humanamente possível, ao esplendor que lhes concedeu o génio do Mago! Mas lembre-se que nenhuma criatura humana ainda tentou restaurar o cristalaço!

- Faça o seu melhor. Mas, insisto, deve compreender que todos os cuidados são poucos para preservar a integridade e a posse destes tesouros, pois se caírem nas mãos erradas a guerra civil é certa, e poderemos mesmo perder a independência, caso demos mostras de fraqueza os agressivos vizinhos da nossa região... O nosso chefe de sgurança ajustará os pormenores consigo, mas só eu terei meios para lhe dar acesso às obras, que, à nossa saída, estarão guardadas pela tropa de elite e vigiadas e protegidas electronicamente.

- Muito bem, Majestade. Como desejar.

Ao mesmo tempo, Espada estudava o que podia sobre a arma conhecida na lenda como Sabre de Cristal. Era fascinado por tudo o que tinha lâmina, de punhal a montante, de shuriken a florete, de tal modo que lhe perguntavam se tinha mudado o apelido de propósito.

Por vezes arrependiam-se da piada, pois tinha o condão de metamorfosear o rosto, que de ordinário lhe interessava manter bonacheirão, gelando os olhos azul-cinza. Aí metia respeito, e tinha cabedal para apoiar o bluff se fosse preciso ir a jogo.

Cansado de tentar distinguir verdade de teoria parva na internet, foi dar uma volta noctívaga aos jardins do casino, depois de passear à beira-mar. Não se conteve e espreitou para a mansão onde sabia que a raridade estava a ser reparada, vendo uma luz tardia. O artesão devia estar absorto na tarefa minuciosa. Aproximou-se até ser barrado pela segurança, só mesmo por vício profissional, e resolveu ir até às salas de jogo ver o que pescava de informações.

Mas desistiu quando um gume faiscou na escuridão e se cravou na palmeira que acabava de passar, com um silvo de morte. “Gosto de lâminas, e esta é um bonito espécime, mas ainda não estou pronto para patinar”, pensou, retirando a faca esguia do tronco antigo e voltando a casa montado num assobio. Mais uma para a colecção...

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